Catacumba metropolitana

Saiu da catacumba metropolitana num desespero de vazio. As suas armações intra-derme apertavam-se-lhe em efeito torniquete, abafando-lhe os pulmões até quase não poder respirar na ânsia de levar dois ou três cigarros à boca. Nesse dia, tudo tido ficado claro para ele. As viagens sucessivas depois do horário laboral na linha do metro haviam-no tornado toupeira, rasgando o pobre bicho acossado o subsolo da vida lá fora numa qualquer carruagem em que pudesse mirar os meneios das pessoas. Mas naquele dia saiu aflito e percorreu os lances de escada com a maior rapidez possível. Quando ainda viu o sol, pensou que tinha sido salvo da escuridão e das jornadas sem destino. Olhou-se como pôde, mas o súbito balancear dos braços dos transeuntes avulsos fê-lo regressar novamente a uns bons metros abaixo do nível dos seus pés em chama, voltando-lhe a despertar a noção da maquinação e fragilidade do organismo humano...

... as manhãs são de mau acordar e assim ruma ao trabalho enfadonho num pequeno escritório de contabilidade. O seu gabinete, minúsculo, é o único que não tem retratos de sobrinhos, namorados com nuances capilares ou caniches de água. Por sua vez, as suas colegas, Anabela e Flor, ambas de pequenas localidades provincianas do Norte, têm tralha suficiente para vender na Feira da Ladra ou outras afins. – O tempo hoje não está tão ‘buã’ como ontem, pois não, Flor? – É esta ‘t'chuba’ maldita que estraga tudo! Vão da cumplicidade do gesto aos estalidos regionais acrobáticos da fala… e vedam-lhe o silêncio. Mas o que mais o transtorna é o declive da graciosidade da vida. Para ele, desde que se divorciou de um casamento de três anos, oito meses e mais uns quantos dias de uma mulher que o abafava com a sua alegria desesperante, a vida continuava a correr a conta gotas: sem a emoção de uma lotaria ganha durante uma intempérie teimosa. No dia do seu casamento sentiu de novo as fortes dores provocadas pela sua hérnia inguinal. Tinha pedido a Teresa, a sua futura consorte, que adiasse a cerimónia para cumprir o dia de cirurgia, mas urgia nela o desejo de desfilar no seu haute-couture branco e negou-o. Soltara-se-lhe na pele uma urticária descomunal e deixou-se entregue ao imaginário por uns leves 10 segundos de homicídio pouco contemplativo. Ardia nele a leitura ruminante que fazia dos convidados aquando das suas expressões alienadas no abrir do copo de água e a das cedências exangues. Dos inevitáveis consumos mínimos obrigatórios depositados em envelopes. Ainda por cima, a sua mulher despertava nos homens uma quase incontida vontade de a consumir como às caixas de fósforos de vinte cêntimos, em registo de fumador fabril. Tinha quase 1,70 e pouco mais de 50 quilos. Além dos seus pequenos e insinuantes seios, juntas, as suas nádegas rijas e sem vestígios de desconserto, anunciavam persuasivas arritmias e nele, naturalmente, um ciúme electrizante. As dores cegavam-no cada vez mais e nem o cair da noite, depois do bacalhau, dos bifinhos, dos colarinhos apertados e da vontade de se descalçar, lhe restabelecera a esperança de que o dia seguinte fosse melhor...

"Quando ainda viu o sol, pensou que tinha sido salvo da escuridão e das jornadas sem destino"

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